— Você aguenta bem um soco? — perguntou o embaixador-adjunto Schmidt.
O tenente Harry Wilson piscou por um momento e repousou a bebida no balcão.
— Sabe, existem algumas possibilidades para a forma como uma conversa pode seguir depois de uma pergunta dessas. E nenhuma delas termina bem — disse Harry.
— Não quis dizer nesse sentido — explicou Schmidt, tamborilando os dedos no próprio copo. Harry reparou nesse tique, uma das formas prediletas de Hart Schmidt sinalizar o nervosismo que sentia. Era muito divertido jogar pôquer com ele por conta disso. — Tenho um motivo bem específico para perguntar.
— Espero que sim. Porque não é, nem de longe, uma das melhores frases para quebrar o gelo — respondeu Harry.
Schmidt olhou ao redor da sala de recreação da Clarke e disse:
— Talvez aqui não seja o melhor lugar para falar sobre isso.
Harry deu uma olhada rápida pelo lugar. Era um local de uma insipidez ímpar: um punhado de cadeiras de bar magnéticas e mesas igualmente magnéticas, e uma única escotilha pela qual reluzia o brilho embaçado, verde-amarelado, de um dos braços de Korba-Aty. As bebidas que tomavam vinham da fileira de máquinas de venda automática embutidas na parede. A única outra pessoa ali era a tenente Grant, contramestra da Clarke, que olhava para seu tablet e usava fones de ouvido.
— Não tem problema, Hart. Já chega de melodrama. Desembucha logo — disse Harry.
— Tá bem — respondeu Schmidt, tamborilando mais um pouco no copo. Harry ficou esperando. — Olha só, esta missão não está indo bem — disse ele, enfim.
— Jura? — retrucou Harry, de um jeito seco.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Schmidt.
— Não fique na defensiva, Hart. Não estou pondo a culpa em você — disse Harry.
— Só queria saber como chegou a essa conclusão.
— Quer dizer, como cheguei a essa conclusão apesar de estar no olho do furacão, né? — ironizou Harry.
Schmidt franziu o cenho e disse:
— Não sei o que isso quer dizer.
— Quer dizer que você me deixa no escuro e só me conta bobagem — rebateu Harry.
— Ah! Desculpa — exclamou Schmidt.
— Não faz mal. É uma missão diplomática da União Colonial. Eu sou das Forças Coloniais de Defesa e você não quer que os Korbas me vejam porque não quer que minha presença seja interpretada como uma provocação. Então, enquanto o resto de vocês aí tem a chance de descer no planeta, respirar ar de verdade e pegar um solzinho, eu fico aqui em cima, nesta latrina de espaçonave, encarregado de treinar os técnicos para usar o gerador de campo e tirando o atraso das minhas leituras. Aliás, essa última parte está indo muito bem. Acabei de terminar de ler Anna Kariênina.
— E o que achou? — perguntou Schmidt.
— Nada mal. A moral é ficar longe de trens. Mas onde eu queria chegar é que sei o porquê de me deixarem no escuro. Não faz mal. É justo. Não sou burro, Hart. Mesmo que nenhum de vocês me conte sobre a missão, consigo perceber que não está indo bem. Todos os seus delegados e assistentes voltam para a Clarke com a cara de quem passou o dia inteiro levando porrada. É uma dica sutil. — Harry apanhou o copo e deu um gole.
— Hmmm. Na verdade, é isso mesmo — confessou Schmidt. — A missão não está indo bem. Os Korbas não estão sendo, nem de longe, tão receptivos às nossas negociações quanto achávamos que estariam. Queremos experimentar algo novo. Um novo direcionamento. Uma nova abordagem diplomática.
— Uma nova abordagem que, de algum modo, envolve eu levar um soco — completou Harry, repousando a bebida.
— Talvez — admitiu Schmidt.
— Só um ou vários? — perguntou Harry.
— Acho que depende da sua definição — disse Schmidt.
— De “um”? — perguntou Harry.
— De “soco”, na verdade — corrigiu Schmidt.
— Já tenho profundas ressalvas quanto a esse plano — disse Harry.
— Bem, deixa eu te dar um pouco de contexto — falou Schmidt.
— Por favor — pediu Harry.
Schmidt sacou seu tablet e fez menção de passá-lo, deslizando-o sobre a mesa, para Harry, mas parou no meio do movimento.
— Você sabe que tudo que estou para contar é sigiloso.
— Pelo amor, Hart. Eu sou a única pessoa a bordo da Clarke que não sabe o que está acontecendo. — Harry esticou a mão e pegou o tablet. Na tela havia a imagem de algum cruzador de batalha flutuando perto de um arranha-céu. Ou, para colocar em termos mais precisos, o que tinha sobrado de um arranha-céu, já que estava inteiro destruído, possivelmente pelo cruzador de batalha. No primeiro plano da imagem havia borrões pequenos, com um vago aspecto humanoide, que pareciam correr do prédio.
— Bela imagem — comentou Harry.
— O que você acha que está vendo aí? — perguntou Schmidt.
— Um forte argumento contra deixar o estagiário pilotar o cruzador — respondeu Harry.
— É a foto de um golpe korbano recente. Houve um desacordo entre o chefe dos militares e a liderança civil. O arranha-céu é… bem, era a sede administrativa korbana — disse Schmidt.
— Então, nessa discussão em particular, os civis perderam — concluiu Harry.
— Basicamente — concordou Schmidt.
— E onde que a gente entra nisso? — perguntou Harry, entregando o tablet de volta. — Estamos tentando restaurar o governo civil? Porque, para ser bem honesto, não me soa como uma preocupação que a UC teria.
— Não é essa a questão — disse Schmidt, pegando o aparelho. — Antes do golpe, os Korbas mal apareciam no nosso radar. Tinham uma política antiexpansionista. Possuíam seus poucos planetas e haviam passado séculos satisfeitos com isso. Não tínhamos qualquer conflito com esse povo, por isso nunca ligamos para ele. Após o golpe, passaram a ter muito interesse em voltar a expandir.
— E isso nos preocupa — disse Harry.
— Não se conseguirmos conduzi-los para que expandam na direção de alguns dos nossos inimigos — esclareceu Schmidt. — Há algumas raças nesta área que estão pressionando a gente. Se elas se preocupassem com outra coisa, sobrariam menos recursos para nos atingir — esclareceu Schmidt.
— Aí sim, essa é a União Colonial que eu conheço — comentou Harry. — Sempre feliz em dar uma facada na cara dos outros. Mas nenhuma dessas coisas tem nada a ver comigo levar um soco na fuça — comentou Harry.
— Tem, sim, na verdade. Cometemos um erro tático. Esta é uma missão diplomática, mas os novos líderes de Korba são militares. Têm curiosidade quanto às nossas Forças Armadas, especialmente nossos soldados das fcd, que eles mesmos nunca encontraram na vida, porque nossas raças jamais lutaram entre si. Somos civis, não temos militar algum disponível e pouquíssima coisa em termos de capacidades bélicas para mostrar a eles. Trouxemos esse gerador de campo que você tem usado para treinar os técnicos, mas é uma tecnologia defensiva. Eles têm muito mais interesse em nossas capacidades ofensivas. E em especial todo um interesse em ver os nossos soldados em ação. As negociações até este ponto estão indo mal porque não viemos equipados para dar o que querem. Mas aí nós deixamos escapar o fato de que temos um membro das fcd a bordo da Clarke.
— Nós deixamos escapar — apontou Harry.
— Bem, eu deixei escapar, na verdade — admitiu Schmidt.
— Por favor, Harry, não me olha desse jeito. A missão está prestes a fracassar. Alguns de nós precisam que ela seja bem-sucedida. Minha carreira não está exatamente no auge, sabe? Se essa missão for pelo ralo, vão me botar para trabalhar em algum arquivo no subsolo.
— Eu teria mais empatia se a salvação da sua carreira não dependesse de eu sofrer uma concussão — disse Harry.
Schmidt assentiu e depois abaixou a cabeça um pouco, o que Harry interpretou como algo na linha de um pedido de desculpas.
— Quando a gente mencionou você, eles ficaram muito empolgados, e o novo líder dos Korbas nos perguntou… olha só, Harry, é um pedido direto do chefe de Estado… ele nos perguntou se estaríamos dispostos a colocar você para competir contra um dos soldados deles num teste de habilidades — disse Schmidt. — Houve uma forte sugestão de que isso faria toda a diferença no teor das negociações — disse Schmidt.
— Então é claro que você disse que sim — respondeu Harry.
— Queria ressaltar a parte em que falei que a missão está indo pelo ralo — comentou Schmidt.
— Há uma pequena falha nesse plano — apontou Harry. — Além da parte em que levo uma surra, digo. Hart, eu sou das fcd, mas não sou soldado. Sou técnico. Passei os últimos anos trabalhando na divisão de ciência militar das Forças. É por isso que estou aqui, pelo amor de Deus. Estou treinando sua equipe para usar a tecnologia que desenvolvemos. Não estou treinando ninguém para lutar, estou treinando pessoas para girarem botões.
— Você ainda conta com as modificações genéticas das fcd — observou Schmidt, apontando para a silhueta de Harry, sentado na cadeira. – Seu corpo ainda está no auge da forma física, quer você o use ou não. Seus reflexos ainda estão tão rápidos e você ainda está tão forte como jamais esteve. Olha para você, Harry. Não tem nada de flácido ou mole aí. Está numa forma tão boa quanto qualquer soldado na ativa.
— Isso não quer dizer nada — comentou Harry.
— Ah, não? Me diga, Harry. Todos os outros membros desta missão são seres humanos não modificados. Tem alguém aqui que você não conseguiria enfrentar num combate corpo a corpo? – perguntou Schmidt.
— Bem, não tem. Mas é porque vocês são todos moles – respondeu Harry.
— Obrigado pela parte que me toca — disse Schmidt, dando um gole na bebida.
— O ponto em que quero chegar não é se sou ou não modificado para combate, mas que não sou mais soldado faz muito tempo. Lutar não é igual a andar de bicicleta, Hart. Não dá para ficar sem praticar. Se esses caras estão num frenesi tão grande para ver as fcd em ação, então mande um drone de salto para Fênix e solicite a vinda de um esquadrão. Ele chegaria aqui em alguns dias, se você enviasse como pedido prioritário.
— Não temos tempo, Harry. Os Korbas querem uma demonstração de combate hoje à noite. Na verdade — Schmidt conferiu o cronômetro no tablet —, em cerca de quatro horas e meia.
— Ah, você está de sacanagem — disse Harry.
— Fizeram o pedido hoje de manhã, Harry — revelou Schmidt. — Não é como se eu estivesse escondendo isso de você. Falamos de você para eles, aí fizeram o pedido e, dez minutos depois, eu estava a bordo da nave de transporte de volta à Clarke para lhe contar. E cá estamos nós — revelou Schmidt.
— E o que é esse “teste de habilidades” que querem que eu faça? — perguntou Harry.
— É uma espécie de combate ritualizado. É combate físico, mas parecido com um esporte. Tipo caratê, esgrima ou luta livre. São três rounds. A avaliação é feita por pontos. Tem juízes. Pelo que entendi, é praticamente inofensivo. Não vai correr perigo real algum — disse Schmidt.
— Exceto a parte em que me socam — comentou Harry.
— Você se recupera logo — respondeu Schmidt. — E, em todo caso, vai poder revidar — respondeu Schmidt.
— Imagino que eu não possa recusar — disse Harry.
— Claro que pode — falou Schmidt. — Aí quando a missão fracassar, todo mundo nela for rebaixado para uns serviços de merda e os Korbas se aliarem a nossos inimigos e começarem a procurar colônias humanas que possam arrasar, vai poder comemorar que, pelo menos, você saiu dessa sem nenhum arranhão — falou Schmidt.
Harry suspirou e virou toda a bebida no copo.
— Você me deve uma, Hart. Não a União Colonial. Você — disse ele.
— Consigo viver com isso — retrucou Schmidt.
— Tá bem. Então o plano é ir lá, lutar com um dos sujeitos deles, apanhar um pouco e todo mundo sai feliz — disse Harry.
— É mais ou menos isso mesmo — disse Schmidt.
— Mais ou menos — repetiu Harry.
— Tenho dois pedidos para você, da embaixadora Abumwe. E ela me avisou que, por “pedido”, queria dizer “se você não cumprir os dois, vou dar um jeito de infernizar o restante da sua existência para que seja uma vida de dor e sofrimento incessantes” — completou Schmidt.
— É mesmo? — perguntou Harry.
— Ela foi muito precisa quanto às palavras que usou — comentou Schmidt.
— Que lindo. E quais são eles? — perguntou Harry.
— O primeiro é que a luta precisa ficar por um fio. Precisamos mostrar aos Korbas que, desde o começo, a reputação que as FCD possuem é merecida — disse Schmidt.
— Sem saber quais são as regras, como funciona a luta e se eu sequer sou fisicamente capaz de acompanhar… beleza, por que não, né? Vai ser por um fio, sim. E qual o outro pedido?
— Que você perca — disse Schmidt.
***
— As regras são simples — disse Schmidt, traduzindo o que dizia o Korba em pé à sua frente. Normalmente, Harry utilizaria o BrainPal (o computador em sua cabeça) para fazer a tradução, mas ali não tinha acesso à rede da Clarke.
— São três rounds: um round com bongkas, que parecem bastões, Harry; um round de combate corpo a corpo; e um round de combate aquático. Não há limite de tempo para qualquer um deles e continuam até que todos os três árbitros determinem um vencedor, ou até que um dos combatentes seja nocauteado. O árbitro principal faz questão de garantir que você compreenda isso.
— Compreendo — disse Harry, encarando o Korba, que batia mais ou menos na cintura dele. Os Korbas eram um povo atarracado com simetria bilateral, músculos aparentes e recobertos pelo que parecia ser uma quantidade infinita de placas e escamas sobrepostas. As poucas informações que Harry tinha conseguido escavar sobre a fisiologia korbana sugeriam que eram uma espécie de origem anfíbia e que passavam um período da vida na água. Isso, pelo menos, explicava a parte do “combate aquático”. Não havia, no entanto, qualquer fonte óbvia de água no salão onde estavam. Harry ficou se perguntando se alguma coisa tinha se perdido na tradução.
O Korba começou a se pronunciar de novo. Enquanto falava, as placas ao redor do pescoço e peito se moviam de um jeito indefinivelmente esquisito e perturbador. Era quase como se não voltassem direito para o lugar de onde tinham saído. Para Harry, era hipnótico observá-las, de um modo não proposital.
— Harry? — perguntou Schmidt.
— Sim? — disse Harry.
— Você está tranquilo quanto à nudez? — perguntou Schmidt.
— Estou. Espera. Como é que é? — perguntou Harry.
Schmidt suspirou.
— Presta atenção, Harry. A luta é realizada sem roupas para que seja um puro teste de habilidades, sem truques. Você está tranquilo quanto a isso?
Harry deu uma olhada ao redor do salão onde estavam, que mais parecia um ginásio, e cujos assentos eram preenchidos pelos espectadores entre Korbas, diplomatas humanos e membros da tripulação da Clarke de folga. Na multidão humana, ele localizou a embaixadora Abumwe, cuja expressão reforçava a ameaça prévia de sofrimento infinito.
— Então todo mundo vai ver as minhas partes? — confirmou Harry.
— Receio que sim. Tudo certo, então? — confirmou Schmidt.
— Tenho escolha? — perguntou Harry.
— Não muito — respondeu Schmidt.
— Então acho que estou tranquilo. Só veja se dá para eles aumentarem a temperatura no termostato — disse Harry.
— Vou dar uma olhada. — E então Schmidt falou alguma coisa para o Korba, que lhe deu uma longa resposta. Harry duvidou que estivessem discutindo de fato a questão do termostato. O Korba se virou e emitiu um urro surpreendentemente alto, eriçando as placas do pescoço e peito no processo. Harry se lembrou de repente dos lagartos chifrudos que existiam lá na Terra.
Do outro lado da sala, outro Korba se aproximou, segurando um bastão com pouco menos de dois metros de comprimento, cujas extremidades pareciam ter sido pintadas de vermelho. Ele apresentou o bastão para Harry, que o apanhou e agradeceu.
— Obrigado — falou, e o Korba saiu correndo.
O juiz começou a se pronunciar e Schmidt traduziu:
— Ele pede desculpas por não terem conseguido lhe dar um bongka mais interessante, mas, por conta da sua altura, precisaram produzir um novo especialmente para você e não tiveram tempo de entregá-lo a um artesão. Quer que saiba, porém, que o bastão está em plenas condições e você não estará em desvantagem alguma. Diz que pode golpear o oponente à vontade com o bongka, em qualquer parte do corpo, mas usando apenas as extremidades. Usar a parte não marcada para golpear o oponente resultará em perda de pontos. Você pode, porém, usá-la para bloquear.
— Saquei. E posso acertar em qualquer parte do corpo? Eles não têm medo de que pegue no olho? — quis saber Harry.
Schmidt perguntou ao juiz e trouxe de volta a resposta:
— Ele diz que furar um olho conta pontos. Qualquer golpe ou ataque com a ponta do bastão está valendo. — Schmidt ficou quieto por um momento enquanto o juiz falava longamente. — Pelo visto, os Korbas conseguem regenerar membros perdidos e até alguns órgãos depois de um tempo. Não é um grande problema para eles perder um olho.
— Achei que tivesse dito que havia regras, Hart — reclamou Harry.
— Erro meu — disse Schmidt.
— Você e eu vamos ter uma conversinha depois que tudo isso terminar — falou Harry.
Schmidt não respondeu, porque o árbitro começou a se pronunciar de novo.
— O juiz quer saber se você tem um assistente. Se não tiver, vai fornecer um de bom grado.
— E eu tenho um assistente? — perguntou Harry.
— Não sabia que era necessário — admitiu Schmidt.
— Hart, por favor, se esforce um pouco para ser útil — pediu Harry.
— Bem, estou traduzindo aqui — rebateu Schmidt.
— Só tenho sua palavra quanto a isso. Fala pro juiz que você é o meu assistente — disse Harry.
— O quê? Harry, não posso. Eu deveria me sentar com a embaixadora — respondeu Schmidt.
— E eu deveria estar num beliche a bordo da Clarke lendo a primeira parte dos Irmãos Karamázov — retrucou Harry. — Claramente hoje é um dia decepcionante para nós dois. Engula o choro, Hart. Fala pra ele.
Schmidt obedeceu e o árbitro começou a fazer um longo discurso, ao longo do qual as placas do pescoço e peito se deslocaram. Harry espiou a área reservada para os diplomatas da União Colonial e a tripulação da Clarke se sentarem. Todos estavam inquietos em suas fileiras. A arquibancada era pequena demais para humanos, que permaneciam sentados com os joelhos contra o peito como se fossem pais numa apresentação da pré-escola. Não pareciam nada confortáveis.
Bem feito, pensou Harry.
O árbitro parou de falar, voltou-se para o tenente e fez algo com as escamas que dava a impressão de uma onda passando por sua cabeça. Harry estremeceu sem querer, o que o árbitro pareceu entender como uma resposta aceitável. E então foi embora.
— Vamos começar em um minuto. Agora seria uma boa hora para você tirar a roupa — disse Schmidt.
Harry repousou seu bongka e tirou o casaco.
— Imagino que você não vá se despir. Já que é meu assistente e tudo mais — disse ele.
— O árbitro não disse nada sobre isso ao descrever a função — retrucou Schmidt, enquanto apanhava o casaco do amigo.
— E qual é a sua função mesmo? — perguntou Harry.
— Pesquisar sobre seu oponente e dar dicas de como vencê-lo — disse Schmidt.
— E o que você sabe do meu oponente? — perguntou Harry, já sem camisa e começando a tirar as calças.
— Pressuponho que vai ser baixinho — respondeu Schmidt.
— E como faço pra vencê-lo? — perguntou Harry, tirando os sapatos e deixando os dedos testarem o tatame esponjoso.
— Não é pra você vencê-lo. É para empatar e depois se render - respondeu Schmidt.
Harry resmungou e entregou as calças, as meias e os sapatos a Schmidt.
— Estou correto em presumir que várias espécies de legumes fariam um serviço melhor como meu assistente do que você, Hart?
— Sinto muito, Harry. Me pegaram de calças curtas aqui – falou Schmidt.
— E eu, que nem de calça estou? — disse Harry.
— É verdade — disse Schmidt, olhando para o corpo nu do amigo e contando o número de peças de roupas em mãos.
— Onde está sua cueca?
— Hoje era dia de lavar roupa — respondeu Harry.
— Você veio sem cueca para uma função diplomática? — perguntou Schmidt. O horror em sua voz era inconfundível.
— Sim, Hart, eu vim sem cueca para uma função diplomática — disse Harry, gesticulando na direção do próprio corpo. — E agora, como pode ver, estou aqui totalmente à moda espartana para um anão vir me dar paulada. — Ele se abaixou e apanhou seu bongka. — Francamente, Hart. Me ajuda aqui. Se concentra um pouco.
— Certo — disse Hart, olhando de soslaio para a pilha de roupas nas mãos. — Só vou colocar isto aqui em algum lugar. — E começou a se dirigir até a área reservada para os humanos.
Enquanto Hart fazia isso, três Korbas se aproximaram de Harry. Um deles era o árbitro com quem haviam acabado de conversar. Outro Korba trazia o próprio bongka, proporcional à sua altura – o oponente de Wilson. O terceiro estava a um passo atrás, e Harry imaginou que fosse o assistente dele.
Os três Korbas pararam diante de Harry. O que carregava o bongka o entregou ao assistente, depois olhou para seu oponente e estendeu as mãos, com as palmas para o adversário enquanto emitia um grunhido. Harry não fazia a menor ideia de como responder. Então entregou seu bongka para Schmidt, que havia acabado de voltar com uma corridinha, e atirou as mãos para frente, respondendo ao gesto.
— Mãos de jazz! — exclamou Harry, balançando os dedos.
O Korba pareceu satisfeito, tomou seu bongka de volta e partiu na direção do outro lado do ginásio. O árbitro se pronunciou e então ergueu alguma coisa para cima com a mão. Schmidt traduziu:
— Ele disse que estão prontos para começar. Vai sinalizar o começo do round com essa corneta e aí vai soprar de novo no fim. Quando o round terminar, vocês terão alguns minutos enquanto preparam tudo para o próximo. Pode aproveitar esse tempo para descansar e conversar com seu assistente. Entendeu?
— Sim, está bem. Vamos só resolver isso logo. — Ao que Schmidt traduziu a resposta e o árbitro saiu de cena. Harry começou a mexer no bongka, testando o equilíbrio e a resistência. Parecia feito de algum tipo de madeira de lei, e ele ficou se perguntando se o objeto corria o risco de soltar farpa ou se partir.
— Harry — disse Schmidt, apontando para o árbitro, com a corneta para cima. — Vai começar.
Harry segurou o bongka com as duas mãos na horizontal, o peito erguido.
— Mais algum conselho? — perguntou.
— Mire baixo — disse Schmidt, afastando-se da arena.
— Que ótimo — reclamou Harry. O árbitro soprou a corneta e foi até um dos lados do ginásio. Harry deu um passo à frente com o bongka sem tirar os olhos do oponente.
O adversário ergueu o bongka, expandiu o peito e o pescoço de um jeito alarmante e emitiu um barulho ensurdecedor, um misto de arroto e rugido; depois se atirou na direção de Harry o mais rápido que seus pezinhos lhe permitiam. Os Korbas nas arquibancadas, cercando todo o ginásio exceto pela pequena seção dos humanos, torciam de um jeito parecido, inflando o peito e arrotando.
Três segundos depois, Harry confrontou o fato de que não tinha a menor ideia do que estava fazendo. O Korba veio para cima dele com uma sequência atordoante de manobras que cortavam o ar com o bongka. Harry bloqueou um terço dos golpes e evitou o resto dando passos cambaleantes para trás enquanto o Korba avançava, pressionando-o. Ele girava o bongka como uma hélice. Harry percebeu que ter um bastão mais longo não o favorecia em nada; demorava mais para manejá-lo, bloquear e atacar. O pequeno Korba estava em vantagem, por assim dizer.
Ele saltou na direção de Harry e pareceu se esticar todo. Harry tentou dar um golpe por cima da cabeça, a fim de atingi-lo pelas costas. Nisso, o Korba se virou dentro do arco do ataque de Harry, que percebeu ter sido enganado, enquanto o oponente batia em seus dois tornozelos. Ele caiu no chão, e o Korba deu um passo para trás, abrindo distância apenas para amaciar furiosamente a barriga do adversário enquanto isso. Harry fez um rolamento e deu uma estocada às cegas com o bongka na direção do Korba. Acertou um golpe improvável, cutucando-o bem no focinho, o que o atordoou e o fez interromper o ataque para dar um passo para trás. Harry o cutucou algumas outras vezes, fazendo-o recuar mais um pouco, e então se levantou, testando os tornozelos. Estavam doloridos, mas firmes.
— Continua cutucando! — gritou Schmidt. Harry olhou de relance para responder, abaixando a guarda contra o oponente, que aproveitou a deixa e o acertou com força na cabeça antes de voltar a trabalhar nos tornozelos. Harry fraquejou, mas continuou em pé, rodando na direção do centro do ginásio como se estivesse bêbado. O Korba o seguiu, golpeando feliz os ossos já feridos dos tornozelos de Harry, que tinha a distinta sensação de estar sendo feito de palhaço.
Foda-se essa merda, pensou Harry, então parou, plantou o bongka firmemente no tatame do ginásio e subiu no bastão com um salto. Um segundo depois, estava fazendo uma parada de mão em cima do bongka, equilibrando-se graças ao seu controle motor bem calibrado, ainda que usado em raras ocasiões, cortesia da engenharia genética das Forças Coloniais de Defesa.
O Korba, que claramente não esperava nada do tipo, parou e ficou ali, boquiaberto.
— É isso mesmo. Venha bater nos meus tornozelos agora, arrombadinho — disse Harry.
Harry continuou se sentindo confiante quanto àquele plano até o momento em que o Korba se agachou e pulou no ar usando as próprias pernas poderosas para se movimentar. Não conseguiu atingir os tornozelos de Harry. No entanto, conseguiu chegar bem à altura do rosto dele.
Ai, merda, pensou Harry, antes que o estalo incapacitante do bongka que o golpeou bem no dorso do nariz o privasse de qualquer capacidade de raciocínio, comentário ou pensamento. Tudo isso lhe veio com uma dose de dor debilitante enquanto a coluna dele era comprimida pelo tatame durante a queda. Depois disso, houve mais uns momentos de uma curiosa sensação de distanciamento enquanto o bongka do adversário escavava as várias partes do corpo de Harry, ao que se seguiu uma rajada ainda mais distante da corneta. O primeiro round terminara. O Korba saiu pavoneando ao som de aplausos guturais. Harry se levantou com o apoio do bongka e saiu cambaleante até Schmidt, que o aguardava com uma garrafinha d’água.
— Você está bem? — perguntou Schmidt.
— Você é burro ou o quê? — retrucou Harry. Depois pegou a garrafinha e espirrou um pouco de água no próprio rosto.
— Estou meio que me perguntando o que você pensou quando plantou bananeira.
— Pensei que, se eu não fizesse alguma coisa, ele ia moer os ossos dos meus tornozelos — respondeu Harry.
— E o que você pretendia fazer depois disso? — perguntou Schmidt.
— Sei lá — disse Harry. — Foi tudo corrido, Hart. Eu estava improvisando — disse Harry.
— Não sei se funcionou como o esperado — disse Schmidt.
— Bem, talvez se eu tivesse um assistente para me contar que esses desgraçados conseguem pular dois metros no ar depois de agachar, tivesse tentado outra coisa – retrucou Harry.
— Justo — concedeu Schmidt.
— Em todo caso, vocês querem que eu perca, lembra? — comentou Harry.
— Sim, mas queremos que perca por bem pouco. Tem que ser mais acirrado. A embaixadora Abumwe está fuzilando você pelas costas neste momento. Não, não olha — disse Schmidt.
— Hart, se fosse possível ser mais acirrado que isso, teria sido. Harry bebeu um pouco d’água e se alongou, tentando encontrar uma parte do corpo que não estivesse dolorida. O peito do pé esquerdo parecia ser o candidato mais provável. Então lançou um breve olhar para baixo e encontrou alento no fato de que o Korba, pelo visto, não estava ciente de que os testículos humanos são especialmente sensíveis a pauladas. Os seus haviam conseguido escapar ilesos até ali.
— Parece que estão prontos para o segundo round — anunciou Schmidt, apontando para o árbitro, que estava em pé com a corneta. Do outro lado do ginásio, o Korba saltava de um pé para o outro, soltando os músculos para o combate corpo a corpo.
— Maneiro — disse Harry, entregando a garrafa d’água de volta para Schmidt. — Mais palavras de sabedoria para este round?
— Cuidado com os tornozelos — disse Schmidt.
— Está ajudando muito — respondeu Harry. A corneta soou e ele pisou de novo na arena do ginásio.
O Korba não perdeu nem um segundo para sua ofensiva, começando uma investida quase no mesmo instante em que Harry pisou na arena. Alguns metros depois, deu um chute e se atirou pelo ar, as garras de fora mirando na cabeça do oponente.
Desta vez não, seu filho da puta, pensou Harry, abaixando-se rente ao assoalho do ginásio. O Korba passou por cima da cabeça dele, arranhando o ar, e Harry respondeu erguendo a perna e desferindo um excelente pontapé de bicicleta contra seu posterior. O Korba de repente acelerou e saiu voando de cabeça contra a arquibancada, colidindo com violência contra vários outros Korbas, cujos refrescos saíram voando. Harry, ali rente ao tatame, inclinou a cabeça a fim de ver o estrago, depois espiou Schmidt de novo, que lhe fez um joinha bem animado. Harry abriu um sorriso malicioso e se levantou do chão.
O Korba irrompeu do meio da multidão, enfurecido e molhado, atirando-se mais uma vez, descuidadamente, contra Harry. Ter sido atirado na arquibancada de um modo tão súbito e humilhante, pelo visto, havia servido para simplificar a estratégia de ataque dele para apenas rasgar esse humano em dois. Para Harry, não fazia mal.
O Korba se aproximou e pegou embalo para mais um golpe poderoso, fosse contra o ventre ou a região genital de Harry, o que estivesse mais à mão. Harry reagiu mantendo sua posição até o último segundo, quando então esticou o braço. O avanço do Korba foi bloqueado assim que a palma da mão de Harry encontrou a testa do pequeno alienígena. Era como deter uma criança de oito anos particularmente agressiva. Harry deu uma risadinha.
O Korba não achou graça naquilo, que lhe pareceu uma manobra defensiva condescendente da parte do adversário. Ele meio arrotou, meio rosnou de raiva e se preparou para dilacerar o antebraço do oponente. Harry recuou com o braço direito a fim de acertá-lo, o que distraiu o Korba, e então retraiu e fechou a palma da mão esquerda rapidamente, formando um punho mais ou menos fechado, com o qual atingiu o adversário bem no rosto. O alienígena roncou, alarmado, e Harry aproveitou o momento para dar um gancho de direita em cheio no focinho do Korba.
As escamas e placas do rosto do oponente inflaram-se todas, como se a cabeça do alienígena fosse uma flor desabrochando via trauma, depois voltaram ao lugar assim que o Korba desabou no chão. Harry conseguiu mantê-lo ali com chutes violentos, desferidos toda vez que ele sequer mexia uma escama. Cedo ou tarde, os árbitros ficaram entediados com a cena e sopraram a corneta. Harry saiu andando, enquanto o assistente do Korba veio e o arrastou para fora.
— Acho que talvez tenha exagerado nos chutes — comentou Schmidt, entregando a Harry a garrafa d’água que tinha enchido de novo.
— Não foram os seus rins que viraram patê no primeiro round. Eu só retribuí. Ele ainda estava respirando no final do round. Está ótimo. E agora a luta está acirrada, que é o que vocês queriam — respondeu ele.
Harry deu um gole.
Uma porta se abriu na lateral do ginásio e uma geringonça semelhante a uma empilhadeira apareceu, carregando o que parecia uma piscina infantil cheia d’água. A piscina foi colocada perto de Harry, e então a empilhadeira sumiu de novo, reaparecendo um minuto depois com outra piscininha, colocada perto do concorrente Korba.
Harry olhou para Schmidt, que deu de ombros.
— É para o round aquático? — Hart arriscou dizer.
— E a gente vai fazer o quê? Jogar água um no outro? — perguntou Harry.
— Olha só — apontou Schmidt. O competidor Korba, um tanto recuperado, havia entrado na piscina dele. O árbitro, em pé no meio do ginásio, gesticulou para que Harry pisasse na piscina à sua frente também. Harry olhou para Schmidt, que deu de ombros de novo. — Não pergunte para mim — disse o amigo.
Harry suspirou e entrou na própria piscina. A água, bem morna, chegava até a metade de sua coxa. Harry lutou contra a vontade de se sentar e ficar ali curtindo. Olhou de novo para Schmidt e perguntou:
— E agora o que que eu faço?
Schmidt não respondeu. Harry acenou na frente do amigo e disse:
— Hart. Oi?
Schmidt olhou de volta para ele e comentou:
— Acho que você vai querer olhar para frente, Harry.
Wilson deu meia-volta e olhou para o competidor Korba, que de repente estava uns bons trinta centímetros mais alto do que antes e ainda crescia.
Mas que diabos?, pensou Harry. E então ele viu. O nível d’água na piscina do oponente estava abaixando aos poucos. Enquanto isso, as placas e escamas do corpo dele mudavam de lugar, deslizando umas contra as outras e se separando. Harry observou enquanto as escamas do ventre do Korba pareciam se esticar e depois se unir, como se as de baixo estivessem travadas por conta das placas acima, que se expandiam graças à água, absorvida da piscininha, que inundava o corpo do alienígena. Os olhos de Harry mudaram de foco, do ventre do oponente para as mãos dele, onde os dedos se expandiam ao fazer as escamas sobrepostas girarem, travando-as todas juntas numa dança até então desconhecida de sequências de Fibonacci.
A mente de Harry pensou em várias coisas ao mesmo tempo.
A primeira foi o fascínio pela fisiologia absolutamente assombrosa dos Korbas ali demonstrada. As escamas e placas que recobriam os corpos deles não eram apenas tegumentárias, mas precisavam ser estruturais também, servindo para manter a forma do corpo korbano em ambos os estados. Harry duvidou que houvesse um esqueleto interno, pelo menos não do jeito que se via num corpo humano, e tudo aquilo de se inflar e se expandir que tinha visto antes sugeria que o sistema estrutural dos alienígenas usava ar e água igualmente para fazer coisas específicas. Estava claro que essa espécie era o achado da década.
A segunda o fez estremecer ao imaginar o tipo de pressão evolucionária que levara os Korbas – ou os distantes ancestrais anfibioides deles – a desenvolverem um mecanismo de defesa tão dramático. Fosse lá o que houvesse nos mares primordiais do planeta, devia ser aterrorizante para um caramba.
A terceira coisa que pensou, enquanto o Korba bombeava a água para dentro do corpo, crescendo até chegar ao equivalente ao quadrado do tamanho – e, assustadoramente, ao cubo da massa – das dimensões de Harry, foi que estava prestes a levar uma perfeita e verdadeira surra.
— Não tem como você me dizer que não sabia disso — falou Harry, virando-se para Schmidt.
— Juro para você, Harry. Isso é novidade para mim — respondeu Schmidt.
— Como deixou escapar uma coisa dessas? O que diabos vocês fazem o dia inteiro? — esbravejou Harry.
— Somos diplomatas, Harry, não xenobiólogos. Não acha que eu teria contado para você? — esquivou-se Schmidt.
A corneta do árbitro soou. Houve um baque estrondoso quando o Korba imenso saiu da piscina, os pés martelando o chão.
— Ai, merda — disse Harry, jogando água enquanto tentava sair da própria piscina.
— Não tenho nenhum conselho para você — disse Schmidt.
— Não brinca — respondeu Harry.
— Ai, Deus, lá vem ele — disse Schmidt, enquanto saía da arena, cambaleando.
Harry olhou para cima bem a tempo de ver um punho imenso de carne, água e dinâmica de fluidos acertar seu abdômen com um golpe que o fez sair voando até outro lado do ginásio. Parte do cérebro de Harry ficou admirado pela massa e aceleração necessárias para que fosse arremessado daquele jeito, ao mesmo tempo que outra parte constatou que pelo menos algumas costelas haviam ido embora com esse soco.
A multidão soltou um rugido de aprovação.
Grogue, Harry voltou a si bem na hora que o Korba chegou pisando duro, levantando o pé imenso e pisoteando em cheio o peito do adversário, causando-lhe uma sensação de desfibrilação involuntária. Harry ficou observando quando o alienígena levantou o pé novamente e reparou que havia nele duas grandes concavidades hexagonais. A parte de seu cérebro que tinha se maravilhado havia pouco com a fisiologia korbana reconheceu que deveria ser por ali que o corpo absorvia a água, pois precisaria ter pelo menos esse tamanho para o organismo poder crescer com aquela rapidez.
A parte restante do cérebro de Harry mandou essa outra parte calar a boca e vazar dali, porque lá vinha aquele pé de novo. Harry resmungou e fez um rolamento, pulando de leve por conta do impacto do pé com o chão onde tinha estado, que fez tudo vibrar. Harry saiu rastejando e depois ficou em pé num pulo, desviando por pouco de um chute que o teria jogado contra a parede.
O Korba pisou duro na direção do adversário, desferindo golpes ao som dos vivas da plateia. O alienígena se aproximou logo porque seu tamanho o permitia cobrir essa distância mais rápido, mas, ao ser golpeado, Harry percebeu que os ataques dele estavam mais lentos do que antes. Havia muita inércia ali para o Korba conseguir se virar de repente ou dar golpes rápidos. Harry desconfiava que, quando os membros da espécie se enfrentavam nesse round, o que acontecia era basicamente os dois ficarem em pé no meio do ginásio, espancando um ao outro até um deles desmaiar. Essa estratégia não funcionaria ali. Harry pensou de novo no primeiro round, quando o tamanho reduzido do Korba era uma vantagem – o tamanho e o fato de que ele sabia manejar um bongka. Naquele momento a situação tinha se invertido: as dimensões reduzidas de Harry poderiam agir a seu favor, enquanto o Korba, com aquele tamanho todo, não saberia lutar com algo menor.
Vamos testar isso, pensou Harry, correndo na direção do adversário de repente. O Korba mirou um golpe poderoso contra ele e Harry se abaixou, aproximando-se e cravando uma cotovelada no abdômen do alienígena. Então descobriu, horrorizado, que, graças ao intumescimento, bater nas placas do Korba era igual a esmurrar uma parede de concreto.
Opa, pensou, e depois urrou assim que o Korba o apanhou pelos cabelos e o levantou no ar. Harry se agarrou ao braço dele, a fim de evitar que o couro cabeludo fosse arrancado. O alienígena começou a socá-lo nas costelas, quebrando mais algumas. No meio de sua dor, Harry conseguiu se apoiar contra o braço do Korba e desferir um chute para cima, enfiando o dedão no focinho do adversário, claramente a parte do corpo dele que deu sorte de conseguir atingir. O Korba uivou e o largou, ao que Harry despencou de costas contra o chão. Antes que pudesse se virar, o Korba pisou no peito dele como se fosse um pistão, uma, duas, três vezes.
Harry sentiu uma pontada nauseante. Tinha quase certeza de que havia perfurado um pulmão. O Korba pisou de novo, fazendo-o expelir fluidos pela boca. É um pulmão perfurado, com certeza, pensou.
O alienígena, então, ergueu o pé mais uma vez, mirando na cabeça do oponente e demorando um momento para aperfeiçoar a pontaria.
Harry estendeu o braço e agarrou a parte de cima do pé do Korba com a mão esquerda. Com a direita, estendeu os dedos e os enfiou com toda a força em uma das entradas hexagonais. Nisso, pode sentir algo se rasgando: a válvula de carne que mantinha a água no interior do corpo. Ao rompê-la, um jato de água morna foi expelido do pé do Korba, molhando Harry inteiro.
O alienígena respondeu com um grito indescritivelmente horrendo, enquanto essa dor inesperada obliterava qualquer outra coisa que chamasse sua atenção e ele tentava enxotar Harry dali. Mas Harry se agarrou com força, enfiando os dedos ainda mais fundo dentro daquela válvula. Então envolveu o braço esquerdo em torno da panturrilha do Korba e começou a apertar, espremendo-o feito uma fruta. A água jorrava sobre o chão. O alienígena dava saltos frenéticos, tentando tirá-lo dali e escorregando no líquido expelido. Ao cair de costas, causou um tremor no ginásio inteiro. Harry mudou de posição e começou a fazer força na perna a partir da parte inferior, expelindo dela uma quantidade ainda maior de água. Dava para ver de fato a perna murchando. O Korba uivava e se contorcia, claramente sem conseguir fugir dali. Harry imaginou que, se os árbitros possuíssem um pingo de juízo, teriam que encerrar o round a qualquer momento.
Ele olhou para Schmidt, que o encarava com uma expressão de puro terror. Demorou um minuto para entender o porquê.
Ah, é, pensou Harry consigo mesmo. Era para eu perder.
Ele suspirou e parou de espremer o Korba, largando a perna dele. O adversário, ainda urrando de dor, conseguiu se sentar e olhar para Harry depois de um tempo com uma expressão que só poderia ser de completa confusão. Harry andou e se ajoelhou na frente dele.
— Você não faz ideia do quanto eu estou morrendo por ter que fazer isso — falou, enquanto esticava a mão na direção do rosto do Korba e fazia um gesto de apanhar alguma coisa. Então colocou o dedão para fora, posicionado entre o indicador e o dedo médio, e o mostrou para o alienígena, que o ficou encarando sem compreender nada.
— Olha só. Peguei o seu nariz — disse Harry.
O Korba deu uma cacetada bem na testa de Harry e tudo se apagou.
***
— Não era assim que a gente esperava que você fosse perder — disse Schmidt.
Em seu beliche, Harry se esforçava muito para não fazer careta. Expressões faciais doíam.
— Você pediu para que a luta fosse acirrada e eu perdesse — respondeu ele, tentando mexer a mandíbula da forma menos humana possível.
— Sim – disse Schmidt. — Mas não achávamos que fosse fazer isso de um jeito tão óbvio.
— Surpresa — disse Harry.
— A boa notícia é que funcionou a nosso favor, na verdade — falou Schmidt. — O líder korbano, que aliás ficou todo encharcado de suco de fruta quando você chutou o oponente contra a arquibancada, queria saber por que você deixou que o Korba ganhasse. Tivemos que admitir termos dado a ordem. Ele ficou em êxtase ao ouvir isso — falou Schmidt.
— Tinha apostado dinheiro no outro sujeito, né? — disse Harry.
— Não. Digo, é provável, mas não é essa a questão. O fato é que ele disse que sua disposição para seguir ordens, mesmo quando a vitória estava ao alcance, demonstrava sua capacidade de fazer sacrifícios imediatos em prol de objetivos a longo prazo. Entendeu sua quase vitória como uma demonstração da força das fcd, e sua derrota como um testemunho do valor da disciplina. E já que pareceu bem impressionado com as duas coisas, dissemos que eram exatamente os argumentos que queríamos apresentar.
— Então vocês têm cérebro, afinal de contas — comentou Harry.
— Tivemos jogo de cintura. E agora parece que vamos sair dessa com um acordo, no fim das contas. Você salvou as negociações, Harry. Obrigado — disse Schmidt.
— De nada — disse Harry. — E depois te mando a conta — disse Harry.
— Tenho uma mensagem da embaixadora Abumwe para você — disse Schmidt.
— Mal posso esperar — respondeu Harry.
— Ela agradece pelos seus serviços prestados e diz que gostaria de avisar que o recomendou para uma condecoração. Mas também diz que nunca mais quer vê-lo de novo. Sua palhaçada deu certo desta vez, mas poderia facilmente ter saído pela culatra. No fim das contas, você não vale a dor de cabeça.
— De nada — falou Harry.
— Nada pessoal — respondeu Schmidt.
— Claro que não. Mas gosto da ideia de eu ter coreografado a surra nesse nível de detalhe. Faz com que me sinta um gênio, isso sim — disse Harry.
— E como está se sentindo? Está bem? — perguntou Schmidt.
— Você não para de fazer essa mesma pergunta idiota. Por favor, para de perguntar isso — disse Harry.
— Desculpa – disse Schmidt, virando-se para ir embora. — Só que, de repente, me ocorreu que agora sabemos a resposta para a outra pergunta.
— Qual? — perguntou Harry.
— Se você aguenta bem um soco — disse Schmidt.
Harry sorriu e depois fez uma careta.
— Meu Deus, Hart, não me faça sorrir.
— Desculpa — repetiu Schmidt.
— E você? Aguenta bem levar um soco? — perguntou Harry.
— Se isso é o que é preciso para descobrirmos, Harry, prefiro nem saber — disse Schmidt.
— Está vendo? Falei que vocês eram moles — retrucou Harry.
Schmidt abriu um sorrisinho e saiu.
© 2024 Editora Aleph - Pensando novos futuros | Termos de Uso e Política de Privacidade